Nos dias 29 e 30 de maio de 1979 acontecia em Salvador, o 31º. Congresso da União Nacional dos Estudantes, o “Congresso da Reconstrução”, um evento histórico. Marcava o fim de 13 anos de ilegalidade, no momento que crescia a pressão sobre a ditadura militar.
O Congresso foi o resultado final de um árduo processo, pavimentado por quatro Encontros Nacionais de Estudantes e inúmeras reuniões. Participei de todos, entre eles o de junho de 1977, em Belo Horizonte, que foi o “Encontro que não ocorreu”, porque a PM cercou todo o centro da cidade e as proximidades da Universidade Federal de Minas Gerais. Partimos de São Paulo de madrugada e voltamos ao final da tarde, depois de muito andar perdido por BH. Éramos cinco num Passat, ida eufórica, volta frustrada.
Também inesquecível foi o seguinte, na PUC de São Paulo, em setembro do mesmo ano. Proibido pelo famigerado coronel Erasmo Dias, secretário da Segurança Pública, mesmo assim o III Encontro aconteceria, em formato reduzido, numa sala de aula da universidade, onde não éramos mais de 40 pessoas. Irado, o coronel, assim que soube da realização do evento que havia burlado seu aparato, disparou a vingança sobre os mais de mil estudantes que realizavam na mesma noite um ato comemorativo da façanha. O resultado, todos conhecem: 900 estudantes presos, dezenas de feridos, alguns graves. Um dia para jamais esquecer.
Menos de um ano depois, no ainda em obras Centro de Convenções cedido pelo governador Antonio Carlos Magalhães, 10 mil estudantes se encontraram. Deles, 3.304 eram delegados eleitos em assembléias nas suas bases. À mesa, entre outros ilustres, José Serra e José Genoíno, ex-presidentes da UNE.
Não, leitor, eu não estava lá. Desta vez por um golpe de azar: nas vésperas do Congresso fui “transferido” – era assim que as organizações de esquerda chamavam as mudanças de área de atuação de seus militantes – e saí do movimento estudantil. Acompanhei o Congresso pela imprensa com uma lupa e muita frustração, aquela sensação de perder o melhor da festa.
Para escrever hoje tenho que recorrer a fragmentos da minha memória já um tanto gasta, recordando conversas com companheiros que voltaram de lá entusiasmados. E a depoimentos de quem viveu de dentro aquele momento. A internet me salva: no site da Fundação Cásper Líbero, Thais Sauaya Pereira, publica uma bela crônica, na qual conta sua aventura quando tinha 20 anos e pertencia à diretoria do Centro Acadêmico da Faculdade de Química da USP. Thais foi até Salvador de ônibus, fretado por mais de 40 estudantes paulistas. Ela fala da viagem de mais de 50 horas:
“Na ansiedade esfuziante, não diferíamos muito dos ônibus de excursão do ginásio, nem daqueles das torcidas de futebol. No entanto, tínhamos consciência de que aquele era um momento histórico: discutíamos com paixão o socialismo, a guerrilha, a ditadura, os rachas nas organizações clandestinas, os professores, as relações afetivas, o aborto, a falta de grana, o amor livre, morar sem os pais, as drogas, o cinema, Marx, Lênin, Engels, Trotsky, Stálin, Brecht, Chaplin, Glauber, Vittorio de Sica... enfim, o mundo”.
O Congresso ganhou o nome de Honestino Guimarães, último presidente da UNE, eleito em 1970, quando a entidade atuava muito precariamente na clandestinidade. Honestino era estudante da Universidade de Brasília, foi preso pelo Centro de Informações da Marinha (CENIMAR), está desaparecido até hoje.
Javier Alfaia também estava presente e se tornaria presidente da entidade dois congressos depois. Em 1999 ele era vereador em Salvador. Aí, na Câmara Municipal, em sessão que comemorava os 20 anos do Congresso, ele discursou contando um pouco do clima na data:
“Enfrentando sucessivos cortes de energia elétrica, lançamento de substâncias tóxicas que irritavam os olhos de delegados e dirigentes da mesa, com os jeans ainda mais esbranquiçados pela caliça que se espalhava por todo canto daquele prédio em construção, nós consolidamos um marco na retomada do processo democrático”.
E falava com orgulho do povo soteropolitano: “Salvador recebeu a UNE de braços abertos. O Congresso mobilizou esta cidade. As famílias ligavam para os diretórios acadêmicos, para o DCE, e colocavam suas casas à disposição para receber os estudantes. Nós listamos cinco mil vagas de hospedagem em residências particulares, em casas de companheiros, de professores, em instituições”.
Foram dois dias de debates, de desencontros, de confusões. De sons, músicas e gritos. De oradores efusivos e de “questões de ordem”. De tensões e temores, de coragem e energia. As diversas “tendências”, que era o nome que dávamos na época aos agrupamentos políticos dos estudantes, conduziram os debates. Por trás delas, grupos e organizações clandestinas se construíam, em tempos que só dois arremedos de partidos eram permitidos pela ditadura, a ARENA e o MDB. “Caminhando”, “Liberdade e Luta”, “Refazendo”, “Novo Rumo”, “Centelha” eram os nomes de algumas delas, que reuniam então centenas, até milhares, de adeptos. Depois de muita discussão conseguiram aprovar uma “Carta de Princípios”, que seria a referência para a entidade que renascia.
Um grande debate tomou conta do encontro. Eleger ou não ali mesmo o presidente da entidade? Venceu a proposta das eleições diretas, que acabaram ocorrendo por todo o País em 3 e 4 de outubro, alguns meses depois. O baiano Ruy Cezar Costa Silva, estudante de comunicações na Universidade Federal da Bahia, foi eleito presidente.
A UNE renascia, quando movimento estudantil saudava a entrada em cena do movimento operário. Depois das greves metalúrgicas do ABC em 1978 e 79, lideradas por um certo Lula da Silva, os militares e seus apoiadores viam crescer uma oposição que logo se tornaria insustentável.
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